12 fevereiro 2008

Pe(r)so(n)a(gem)

Nesta aula fomos caçar personagens. Pegámos no carro em direcção à baixa, separámo-nos no Largo de Camões e preparámo-nos para apontar as armas aos alvos. Antes de cada um ir à sua vida de caçador, combinámos o ponto de encontro nesse mesmo largo, às 13.30, para voltarmos ao sítio de partida, a ACT.Já sozinha em pleno centro de Lisboa, senti-me muito perdida e sem saber por onde começar. Ninguém me parecia suficientemente interessante para ser seguido, e dar o primeiro passo foi realmente o mais complicado. Vagueei uma boa meia hora até que vi o que me pareceu uma possível boa personagem. Era uma rapariga estrangeira (turista) com os cabelos muito louros emaranhados numa trança comprida que lhe dividia as costas, casaco vermelho até aos joelhos, calças de ganga, botas pretas, mala laranja e vermelha da marca Gola a tira-colo, e óculos escuros na cabeça. Estava acompanhada por uma senhora, provavelmente a mãe. A princípio segui-las foi engraçado pois como eram turistas viam e andavam pela cidade de uma maneira muito própria, quase que a querer olhar para tudo para não perderem nada. Mas depressa se tornou aborrecido pois estavam muito interessadas nas montras de pastelarias e vinhos, parando para olhá-las demoradamente. Acabaram por entrar numa loja de vinho e frutos secos e, como estavam a demorar muito, achei melhor desistir daquela possível personagem e procurar outra mais atraente.Ao sair da loja, reparei numa senhora de meia idade muito baixinha e ligeiramente corcunda. Andava extraordinariamente devagar e nunca olhava para cima. Como me deu pena, resolvi segui-la. Devia medir 1.50 m, tinha óculos grandes e redondos (muito fora de moda) e quando olhava para cima era sempre por cima deles. Tinha uma sobrancelha mais alta e arqueada que a outra, cabelo curto preto já com alguns fios brancos, e toda a sua cara e expressão faziam lembrar o focinho de um cachorrinho perdido. Vestia um casaco azul escuro pelos joelhos com uma gola em pêlo sintético preto, as calças eram pretas, assim como as meias e os sapatos. Não levava mala de senhora, apenas um pequeno e velho saco de ginástica azul escuro com um emblema que não consegui decifrar, e um pequeno saco de plástico branco com qualquer coisa lá dentro. Levava-os na mão esquerda, o lado da corcunda. O seu braço direito, vazio e mais comprido, agarrava com os dedos indicador e médio a ponta da manga do casaco, enquanto os outros estavam rigorosamente esticados para baixo. A sua cabeça, sempre inclinada para baixo, pendia ligeiramente para o lado direito, os seus passos eram muito curtos e as suas paragens constantes. Com o olhar pregado ao chão, andava e parava, andava e parava, andava e parava... não ligando a ninguém. Se as pessoas se metiam com ela para lhe dar um panfleto, ou para se desviarem do caminho, ela nem pestanejava. Parecia que não havia mais ninguém. Seguia sozinha, muito concentrada em si, a baloiçar os sacos, por uma Lisboa cheia de vida e ensolarada.Depressa percebi que iria ser muito difícil seguir aquela criatura. Andava tão devagarinho que não só ela, como as outras pessoas, reparariam com certeza que eu estava a segui-la e a observá-la. Entrou na loja O Celeiro da Dieta. A princípio eu não sabia o que fazer, nunca tinha seguido ninguém e tinha medo que ela se desse conta de que eu estava a segui-la, mas como tive curiosidade em saber o que iria comprar, entrei. Havia muita gente. Tentei não perdê-la de vista, o que me custou. Pediu uma informação a uma empregada, mas infelizmente não consegui ouvir. Quando foi pagar à caixa, reparei nas suas compras: pão de cereais e umas dez caixas de rebuçados suíços Ricola, três ou quatro de cada variedade. Achei muita piada a esse facto, não só porque não conhecia ninguém que comprasse rebuçados Ricola a não ser a minha mãe, mas também porque ela levava uma quantidade exorbitante deles. Pensei logo que não devia morar sozinha. Saiu. Foi até à praça do Rossio, atravessou a estrada e, para meu grande espanto, parou diante de um grupo de jovens “junkies” que fumavam, riam, conversavam e tocavam jambé. Uns de pé, outros sentados ou deitados ao sol, animavam aquele bocadinho de passeio. Tentei ver se o seu olhar era de reprovação ou contentamento, mas nesse exacto momento recebi a sms do “I´m watching you...” que me distraiu. Como a minha personagem esteve muito pouco tempo parada, não tive tempo para ver a sua reacção, mas pareceu-me que ela não teve reacção nenhuma, que apenas se limitou a olhar. Prosseguindo a marcha, foi devagar, devagarinho até uma loja. Parou, leu um papel que estava colado na montra e foi-se embora. Avancei para ler o papel. Pedia desculpa pelo incómodo, mas iam entrar em obras. Era uma loja de tapeçaria e tecidos antigos. Achei curioso. O que será que a senhora queria comprar? Não sabia, nem iria saber porque já não a via. Olhei para todo o lado, e não a encontrava. Tinha desaparecido! Como era possível? Ela andava tão devagarinho que de certeza não podia ter ido longe. Atravessei a rua, voltei a atravessar. Nada. De repente, reparei noutro papel na montra da tal loja que dizia: “Estamos na loja em frente, no 1º andar, na janela das bandeiras.” Olhei e lá estava ela, prestes a desaparecer num vão de escadas. Que alívio! Entrei na loja e ela viu-me. Assutei-me e baixei a cabeça. Pensei que tivesse sido descoberta, e fiz de tudo para que não nos olhássemos nos olhos. Percebi que agora tinha de redobrar os meus cuidados mas, em princípio, não haveria problemas. A velhota não esteve nem cinco minutos lá dentro. Saiu e eu também. Depois, parou numa pequena mercearia chamada O Mercado da Figueira, mas como era muito pequena e estava cheia de gente, resolvi esperar cá fora. Ela saiu, e eu reparei que não trazia compras. Deu uns passos em frente, parou pensativa, deu meia volta e voltou a entrar para comprar beringelas. Saiu. Contornou a rua, subiu pela Rua da Madalena, onde foi à farmácia e ao talho. Não consegui ver o que comprou, pois ela já me tinha visto, e tive medo de que se sentisse intimidada, que mudasse o seu comportamento, ou que me viesse perguntar se estava a segui-la. Apenas consegui ver como se sentava. Cansada, muito cansada, com a mão direita pousada no colo a segurar uma senha de atendimento, e a mão esquerda pendendo com os sacos no chão. Esperei sentada no degrau de entrada de um prédio mais abaixo. Ela saiu, e eu levantei-me. Largo Adelino Amaro da Costa, Rua do Regedor, Largo São Cristóvão, Rua das Farinhas. Depois, assinei a minha sentença. Baixei o olhar para escrevinhar qualquer coisa no meu bloco e, quando o levantei, ela tinha desaparecido. Procurei por todo o lado, subi e desci a rua, olhei para dentro de todos os cafés, de todas as lojas, de todos os becos, e nada! ...
Senti-me tão frustrada. Começava a gostar daquela velhotinha muda e muito interiorizada no seu mundo. Queria saber para onde ia, qual era o seu destino, porque tinha feito aquele percurso. De certeza que tinha ido comprar o que precisava para o almoço. Mas não sei, nem nunca chegarei a saber, porque falhara a minha missão. Uma velha doente e corcunda que andava a passo de caracol tinha-me passado a perna. Uma velha que por algumas horas fora o centro da minha atenção, do meu trabalho, do meu dia, da minha vida. E assim, daquela maneira estúpida, sem mais nem menos, sem ai nem ui, escapara por entre os meus dedos. Senti um vazio absoluto, um tremendo sentimento de perda, uma desorientação enorme. E, o que mais me atormentava e angustiava, era saber que nunca mais a voltaria a ver. De que nunca saberia o seu nome, nunca ouviria a sua voz, nunca saberia o que tinha sido, se tinha familia, nada.
Acabo este relatório tendo em mente que terei de fazer uma biografia desta pessoa. Não quero. Imaginar é bom, ela pode ser o que eu quiser que ela seja mas, o que eu gostava mesmo, o que eu queria mesmo, era saber o que ela realmente foi. E isso é o que mais me custa, ter a noção de que nunca vou saber a verdade sobre uma pessoa escolhida ao acaso, na qual eu nunca repararia no meu quotidiano, e que por uns momentos foi o centro do meu mundo. Triste e silenciosa, voltei à ACT.