15 janeiro 2007

Amália (Os Meus Contos)

Quando Jacob foi viver para a sua nova casa, numa aldeia piscatória situada à beira-mar, já tinha ouvido muitas histórias acerca da aldeã mais antiga que lá vivia. Chamava-se Amália. Tinha ouvido dizer que ela era uma mulher discreta, simpática e a quem a vida tinha tratado como enteada. Ao vê-la pela primeira vez, Jacob achou-a bonita. Devia andar por volta dos 65 anos, o seu cabelo era grisalho, as rugas profundas, e as roupas sempre negras. Como qualquer pessoa que por ali passasse e a visse, Jacob pensou imediatamente que ela era apenas uma pobre viúva a quem a morte prematura do marido, lhe tinha roubado muitos anos de felicidade. A princípio, Jacob tentou não dar importância à estranha personagem, mas à medida que se ia integrando na sua nova comunidade, o desejo de saber mais sobre aquela misteriosa mulher ia crescendo. Começou a segui-la. Ia à mercearia, à igreja, e por vezes passeava sozinha junto ao mar. A sua existência resumia-se apenas àqueles lugares. Falava bem com toda a gente, mas era fácil perceber que não tinha amigos. Jacob pensou em apresentar-se, mas para dizer o quê? O mais certo era a indiferença da própria Amália...
Quando decidiu fazê-lo, teve uma boa surpresa. Amália tinha sido encantadora! Era muito simpática, divertida, boa conversadora e uma excelente anfitriã. Jacob via nela aquela mãe que todos desejávamos ter. Pensava que os outros é que não se davam ao trabalho de tentar conhecê-la melhor, pois se o fizessem estariam sempre na sua companhia. Quando arranjou namorada na aldeia, a primeira pessoa a saber tinha sido Amália, que aliás ficara muito satisfeita por saber que a escolha de Jacob tinha recaído sobre uma das jovens mais bonitas e interessantes daquele lugar. Davam-se lindamente.
Contudo, havia momentos em que Amália se isolava. Não falava, fechava-se no quarto, passando o dia às escuras deitada na cama e sem comer. No começo, Jacob pensou tratar-se de uma doença, mas no dia seguinte Amália era capaz de estar alegre e sorridente como se nada fosse, e dali a umas semanas estar novamente naquele estranho estado. Jacob comentou com a namorada a preocupação que sentia por aquelas atitudes de Amália. Esta disse-lhe para não se preocupar pois era normal aquilo acontecer. Toda a gente na aldeia sabia que lhe tinha acontecido algo trágico, mas que por respeito, raramente se tocava no assunto. E, como era quase um assunto tabu, os mais jovens também não se punham com grandes questões, até porque para serem francos, não lhes interessava muito. Era apenas uma velha triste. Disposto a descobrir o problema da sua amiga, Jacob infiltrou-se na casa de Amália, para ver se encontrava algo que o pudesse esclarecer. Ao vasculhar algumas gavetas, deparou-se com uma fotografia antiga. Nela podia ver-se uma jovem muito bonita, elegantemente vestida e com um sorriso querido e cativante. No seu colo, estava uma criança. Devia ter dois, três anos e apesar de estar com um ar enfadonho, provavelmente devido ao calor, pois pelas roupas dava para perceber que era Verão, tinha um olhar simpático. Embora a fotografia já estivesse enrugada e amarelecida, Jacob percebeu imediatamente que a bela rapariga era Amália. Uma Amália muito mais jovem e pela expressão, certamente muito mais feliz. Mas quem era o bebé? Seria seu filho? Se era, porque nunca o havia mencionado? Confuso, Jacob voltou a colocar a fotografia na gaveta e saiu.
À noite, fez uma visita a Amália. Viu que ela estava novamente na cama, às escuras e a chorar silenciosamente. Bateu à porta, dizendo o nome. Delicadamente, a mulher pediu-lhe para se ir embora, amanhã falariam. Jacob não obedeceu e abriu a porta que, para sua surpresa, não estava trancada.
O quarto estava muito quente e a pouca luz que entrava vinha das frechas da janela. Jacob sentou-se à beira da cama e começou a falar. Depois de algum esforço e de muitas perguntas, conseguiu fazer com que Amália lhe contasse o porquê daquela tristeza ocasional. No início, as palavras custavam-lhe a sair, mas depois percebeu que o à vontade com Jacob já era suficiente e justificado para que lhe contasse a sua história de vida. Acendeu uma vela, começou a chorar, e devagarinho, o que se escondia há já tanto tempo foi-se libertando da sua alma, como uma brisa fria e serena, pronta a tocar-nos na cara.
Aos 16 anos, Amália tinha casado com um almirante da marinha. Um casamento arranjado pelo seu pai, que surpreendentemente a agradou muitíssimo. Aos 17, era mãe de um rapaz. O marido andava sempre a viajar de continente em continente por causa do trabalho, e Amália ficava em casa com o pequeno a quem tinha dado o nome de Moisés (salvo das águas). Um dia, estava em casa de sua mãe, quando recebeu a notícia de que um navio tinha naufragado junto à costa. Tudo indicava que era o navio do seu marido. Infelizmente, não se tinham enganado. Amália era agora uma jovem mãe viúva, para quem a vida tinha sido madrasta. Passou assim 5 anos. O seu dia-a-dia resumia-se a ir a casa dos pais ou dos sogros, e deixar que as criadas ficasem a tomar conta de Moisés enquanto ela tomava chá com a nata da sociedade. Não satisfeita com aquele tipo de vida, decidiu partir. Fora assim que chegara àquela aldeia. Era um lugar lindo, colorido e alegre, onde podia educar o seu bebé longe de uma sociedade onde o papel mais bonito para uma mulher, o ser mãe, é dado gratuitamente às criadas e amas de leite. Ora, Amália não queria aquilo nem para si, nem para o seu bem mais precioso. Agora, adorava a sua vida! As tarefas domésticas e Moisés, que se tornara uma criança curiosa e reguila, ocupavam o seu dia-a-dia. Subsistiam graças ao que o almirante lhes tinha deixado. Uma pequena fortuna que daria para viver dignamente durante muitos e muitos anos.
Certa manhã, Amália tinha ido estender a roupa ao quintal, enquanto Moisés ficara a brincar junto à porta principal da casa. Quando acabou, chamou-o, mas não obteve resposta. Procurou-o por toda a parte, mas não o conseguia encontrar. Já a entrar num misto de desespero e confusão, foi à aldeia ver se alguém o tinha visto. Não. Ninguém tinha visto Moisés. Não havia rasto do pequeno. O seu filho tinha desaparecido. Com o apoio das autoridades e de alguns vizinhos, passou toda a noite em busca do menino. Em vão. Ele não aparecia, e ninguém o tinha visto. Tinha desaparecido como se nunca tivesse existido. Dias e dias se passaram e nada do Moisés. Amália estava desesperada, não comia, não dormia, não descansava. Só chorava. Enquanto todos já tinham percebido que não havia mais nada a fazer, ela continuava a acreditar que era possível encontrar o seu filho. Passados dois anos, e já exausta de travar uma batalha quase esquecida, resolveu abandonar-se e ir viver sozinha, uma vida afastada e triste. Tudo lhe fazia lembrar Moisés. Tudo. Pensou muitas vezes em fugir dali, ir para outro lugar, mas a verdade é que o seu filho poderia aparecer a qualquer momento, e ela queria lá estar para o receber. Se estivesse vivo, Moisés teria naquele momento 33 anos. A idade de Cristo. Não havia um único dia em que Amália não pensasse nele, em que não pensasse que era possível voltar a vê-lo, voltar a abraçá-lo, voltar a beijá-lo. Era essa esperança que lhe dava forças para continuar. Embora de vez em quando, tivesse as suas recaídas.
Jacob compreendia agora o porquê daquelas atitudes, e aceitava-as perfeitamente. Era o desespero, a frustração e o desgosto de uma mãe que falavam, que a faziam agir assim. Uma mãe que perdera o filho tão dramáticamente como aquela. Que não sabia se ele estava vivo ou morto. Que não sabia nada. Muitas vezes, no seu desespero, Amália dissera que perferia que o seu filho lhe tivesse morrido, ao menos saberia dele. Jacob percebia-a como nunca, e achava que não podia acontecer nada de pior a uma mãe do que ter um filho desaparecido. Uma crueldade. Amália já tinha imaginado tudo; que alguém o tinha morto; que o tinham raptado para tráfego humano; que o tinham raptado para lhe dar uma vida melhor; que era casado e tinha filhos; que era professor; médico; que tinha enveredado por uma vida de crime... sabe-se lá mais o quê... Será que se lembrava dela? Ela não o conseguia esquecer. E uma coisa era certa: a esperança de o encontrar nunca se tinha desvanecido. Continuava e continuaria sempre até que vivesse. Isso era indiscutível.
Depois das mágoas contadas e de tudo esclarecido, depois de muitos silêncios, e lágrimas derramadas, Jacob convenceu Amália a ir dar um passeio à beira-mar. De certeza que o sol, o mar e o riso das crianças a brincar na água a animariam. Com algum mal estar, ela levantou-se.
Quando regressavam a casa, Amália deparou-se com uma nova família que se estava a instalar numa casa desabitada. Perguntou a Jacob quem eram aquelas pessoas, ao que ele respondeu ser uma família vinda da capital que tinha decidido instalar-se ali para que os filhos pudessem crescer em segurança e com mais à vontade. Filosofias de vida!, dizia Jacob. Amália torcia o nariz, não gostava muito que gente de fora viesse destabilizar a paz e harmonia da sua aldeia, esquecendo-se de que ela própria já o tinha feito, na sua época. De repente, parou a olhar fixamente para um ponto à sua frente. Jacob, estranhou. Olhou para Amália. Os seus olhos pequenos estavam maiores e mais expressivos que nunca. Brilhavam intensamente e não por causa das lágrimas, mas por um sentimento de espanto. Estava branca. Parecia uma mistura entre estátua de cera e desenho animado. Para tentar perceber melhor, Jacob levantou os olhos. Olhou para cada um dos membros da nova família. De repente, ao olhar para o pai, o seu coração parou, pois reconheceu o rapazinho enfadonho, mas com olhar simpático da fotografia.

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