09 fevereiro 2007

Agora e Para Sempre (Os Meus Contos)

Estou numa cama de Hospital e já não suporto este cheiro a éter. Há cinco meses que me dizem que o dia seguinte pode ser o último, e há cinco meses que o dia seguinte é sempre o dia anterior. Dizem-mo a mim e à minha família. Como resultado, tenho-os sempre aqui à porta, esperando o meu derradeiro suspiro. Por um lado é bom, fazem-me companhia, contam-me as últimas novidades do mundo exterior e enchem o meu quarto de revistas cor-de-rosa, para que possa ler todos os mexericos... mas por outro é péssimo. Estão sempre com uma cara de preocupação atroz, a pensar que aquela pode ser a última vez que me vêem, não conseguindo por isso retomar as suas rotinas diárias com normalidade. Para mim, que sempre fui uma pessoa independente e cheia de vida, é horrível pensar que sou um fardo. E embora digam que não, sei bem que o sou. Há muito que me dei conta que eles estão bem mais preocupados comigo do que eu. Desde que o câncro me foi diagnosticado que vejo a vida de uma forma.... diferente. Calma, eu diria. Tinha 50 anos, hoje estou com 55. Nestes últimos tempos, reflecti muito sobre tudo. A princípio, caí numa enorme depressão e só pensava porquê eu?, porquê eu que adoro tanto a vida e que sempre a vivi a 100%? Não conseguia arranjar uma resposta concreta. Só pensava nos meus filhos, já adultos, e no meu marido. Principalmente no meu querido marido.
Casámos com 20 anos, passámos juntos 30. Apaixonei-me assim que o vi. Alto, bonito e simpático, de imediato encantou os meus pais. Após dois anos de casados, tivémos a nossa primeira filha, Madalena. Depois chegou o Henrique e mais tarde a Carolina. Foram os melhores anos da minha vida! Criá-los e educá-los foi para mim como andar numa montanha-russa: uma diversão com muitas dores de cabeça. Todos têm idades muito parecidas, logo enquanto dava o biberão a um, tinha de ir mudar a fralda a outro e certificar-me de que o terceiro não caía do baloiço. Claro que o Carlos me ajudava, mas na hora de comer, chorar ou brincar, é pela mãe que os filhos sempre chamam. Ainda hoje me rio muito quando vejo essas fotografias. Que saudades! Depois veio a adolescência. Um período muito complicado. E no nosso caso, tivémos de tudo, as preocupações e medos de um rapaz e de duas raparigas! Ainda hoje tenho a certeza de que foi nesta altura que me começaram a nascer os primeiros cabelos brancos. Mas, ao olhar para trás, e apesar de todos os problemas de revolta, negação e agressividade que os jovens sempre têm, vejo tempos muito bonitos e únicos. A entrada para o liceu, os primeiros namorados, a "renovação" dos quartos com pósters de revistas, o aparecimento da menstruação, as idas às discotecas até às tantas da manhã, novos grupos de amigos, novos interesses, novas convicções, escolhas de áreas, a perda da virgindade, degostos amorosos, bebedeiras, entrada na faculdade, carta de condução, enfim.... o descobrir de um mundo inteiramente novo. O passar de criança para adolescente e de adolescente para adulto. Ou seja, passar de dependente a independente. Não trocaria estes tempos por nada. Foram muito difíceis, mas foi gratificante como mãe ter visto os meus filhos crescer, cada um ao seu ritmo e à sua maneira. Hoje são adultos formados, educados e com os pés bem assentes na terra. A Madalena é advogada e trabalha num escritório privado, o Henrique é investigador científico e trabalha num laboratório, e a Carolina é actriz e pintora, e trabalha numa companhia de teatro independente. Todos seguiram o que quiseram, e todos trabalharam árduamente para estar onde estão. E nada me deixa mais orgulhosa! Aliás, e por falar em orgulho, já me deram algo maravilhoso: netos! A Madalena tem duas meninas, o Henrique uma, e a Carolina está à espera do primeiro filho, que será um rapaz. Adoro-os! Só tenho pena de não estar cá para conhecer o meu neto varão. Mas tive o privilégio de ser eu a escolher o nome! Será Francisco, em honra do meu pai. Já que na altura não permitiu que o neto levasse o seu nome, por não gostar de repetições de nomes entre familiares vivos, será o bisneto a tê-lo. O avô ficou um pouco ciumento, mas sabe que se não fosse Francisco, eu teria certamente escolhido Carlos.
Carlos... o melhor homem que conheci. Tenho muito orgulho em ter partilhado mais de metade da minha existência com ele. Normalmente, diz-se que depois do casamento, a vida de um casal torna-se chata, rotineira e previsível porque já se conquistou tudo o que se tinha para conquistar. Mas eu nunca pensei assim, até porque nunca se chega a conhecer plenamente o outro. Mesmo depois de ter a aliança no dedo e de dizer que aquele era o meu homem, nunca o tomei por garantido. Esforcei-me sempre por pensar que tinha tudo hoje, mas que por qualquer motivo podia perder tudo amanhã, e foi sempre com esse sentimento, e com a certeza absoluta de que aquele era o homem da minha vida, que me empenhei em manter um casamento feliz e sem grandes distúrbios. Nunca me deu razões para desconfiar ou deixar de acreditar na sua palavra. Sempre me tratou com respeito e carinho, sempre me viu como igual. Era um marido excelente e um pai dedicado, mas acima de tudo era o meu melhor amigo. Sabia que podia contar sempre com ele. E isso numa relação é fundamental. Ainda hoje, nesta cama de hospital sinto isso. Desde que adoeci, quando tive de deixei de trabalhar, ou quando tive de rapar o cabelo, que foi o que mais me custou desde que estou doente, ele esteve sempre lá para mim e foi em tudo o meu maior apoio. Cuida de mim, leva-me a todo o lado, ouve-me, e trata da casa sozinho. Apesar de tudo isto, e de já não ser nenhum jovem, nunca o ouvi queixar-se. Nunca. Está sempre com um sorriso na cara, a certificar-se de que me encontro confortável, de que não tenho dores, de que tomei os remédios, de que estou feliz. Amo-o muito. Sempre amei, e sei que também sempre me amou, e que ainda me ama. Por isso, quando me vejo hoje aqui nesta cama desconfortável de hospital, neste quarto branco com uma única janela com vista para umas Amoreiras longínquas, e com um médico que me relembra sempre com o seu "prognóstico reservado" de que hoje pode ser o último dia, sinto-me feliz. Sim, não tenho medo de morrer nem hoje, nem amanhã, nem depois. Já tive. Muito. Mas agora não tenho. Fui muito feliz, e não há medo que se possa sobrepôr a essa felicidade. Adorei a minha vida. Tive uns pais exemplares que me deram uma infância muito feliz, tive um marido dedicado que me preencheu como pessoa e como mulher, e tive filhos únicos que me deram os melhores momentos da minha vida. Ao longo da vida, foram mais as pessoas que me trataram bem, do que as que me trataram mal, ou menos bem. Tive óptimos amigos. Também gostei da pessoa que fui. Simpática, amiga do amigo, curiosa, trabalhadora, tolerante e cívica. Sempre fiz o que achei que devia fazer, e mesmo que as decisões não tenham tido o final que eu esperei, não me arrependo de as ter feito, pois na altura, para mim, faziam todo o sentido.
Sim, não tenho medo da morte. Tive uma vida linda. Uma vida que valeu a pena ser vivida! Quando vejo a minha família ao pé de mim, a conversar animadamente, as crianças a brincarem, os meus filhos, já grandes, a começarem a viver o que eu vivi com eles, fico muito emocionada. Sim, valeu a pena! E era assim, que eu sempre quis que fosse na "hora H". Poder dizer isto quando olhasse para trás. Hoje sei que posso, e fico muito feliz.
Um novo dia começa. Estão a bater à porta. Das duas, uma: ou é o médico ou é o Carlos.

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